Em recente caso, ocorrido na cerimônia do Oscar, em 27 de março de 2022, Jada Pinkett Smith, atriz e esposa de Will Smith, sofreu com uma piada sobre ter sua cabeça raspada, a piada não foi bem recebida pelo casal, haja visto que sua falta de cabelo, decorre de sua doença alopecia, assim, após se descontentar o ator subiu ao palco e agrediu o comediante dando uma bofetada em seu rosto reacendendo a seguinte discussão, pode tudo por uma gargalhada? Qual o verdadeiro objetivo do humor? O humor pode violar dignidade da pessoa humana?
O humor passou a ser caminho de fuga para expressões que desqualificam a dignidade do ser. Através de suas técnicas, as expressões hostis se tornaram muito sutis e veladas no âmbito da sociedade, sendo o riso um importante ponte para que essas manifestações possam ocorrer de forma despercebida. Como destaca Bergson (2004), o riso consiste em uma arte de embalar nossa sensibilidade e de preparar-lhe sonhos, assim como se faz a um indivíduo hipnotizado, a ponto de derrubar qualquer bloqueio que permita separar o legal do ilegal.
O riso é a disposição do ânimo de uma pessoa ou a sua veia cômica, é o estado de espírito e, por esse motivo muitas vezes se afirmar que uma pessoa está de bom ou mau humor, é relativo a uma atitude benevolente que realça o grotesco de um comportamento sem a frivolidade do cômico nem a crueldade da sátira. Bergson (2004) o “define como fenômenos sociais, que só existem na presença do outro”; onde o riso facilita a interação, a comunicação, a aprendizagem e propicia estabelecer ligações com o grupo social no qual se está inserido, é o riso puro e simples como causa e motivo do prazer.
Berson destaca que o riso pode desencorajar nossa simpatia no momento preciso em que ela possa manifestar-se, de tal maneira que a situação, mesmo sendo séria, já não seja levada à sério, onde apresenta formas tendenciosas e com objetivo de hostilizar e humilhar (BERGSON, 2004, p. 105).
Existe um outro tipo modalidade do riso denominado “humor negro”; é um humor em que predominam os elementos absurdos, cruéis e horripilantes. É caracterizado pela tendência para o macabro e grotesco, sendo diferenciado do humorístico e do cômico pelo facto de não admitir nenhuma solução conciliadora. Insiste no aspecto negativo e absurdo, não admitindo o humor que tende para a dissolução ou diluição das contradições, onde prevalece a crueldade revestida de risos, a fatalidade que é possível deter.
O humor negro, ou hostil como defende Freud, age por uma forma tendenciosa, a subordinar o sentido crítico do ouvinte, onde se utiliza de mecanismos de expressão de preconceito e deslegitimação do outro através de piadas humorísticas extravagando abertamente sentimentos agressivos através de “hostilidade brutal proibida por lei, substituída pela invectiva verbal”(FREUD, 1996, p. 102), ou seja, por meio do dito humorístico tornamos “nossos inimigos pequeno, inferior, desprezível ou cômico, conseguimos, por linhas transversas, o prazer de vencê-lo – fato que a terceira pessoa, que não despendeu nenhum esforço, testemunha por seu riso” (FREUD, 1996, p. 103).
Uma arma poderosa para se construir críticas e expressar opiniões sobre determinados feitos sem que o indivíduo perceba o que está realmente sendo dito é o humor. O riso é derivado de elementos socioculturais nos quais o objeto da piada, do qual rimos, carrega em si uma carga histórica de significações que circulam no imaginário social implantando ideias que no nosso senso comum são inadmissíveis.
Porém, não se engane, o riso tem significados e finalidades de alcance no seio da sociedade, na perspectiva de Bergson (2004): “o riso tem significado com alcance sociais, de que a comicidade exprime acima de tudo certa inadaptação particular da pessoa à sociedade, de que não há comicidade fora do homem, é o homem, é o caráter que visamos em primeiro lugar”. Por isso, ela faz pairar sobre cada um senão a ameaça de correção, pelo menos a perspectiva de uma humilhação que, mesmo sendo leve, não deixa de ser temida.
Bergson relata que o humor tem o poder de tornar situações que são consideradas reprováveis, em situação cômica, sem que haja uma percepção do real sentido do que está sendo dito.
Escolha-se, ao contrário, um vício profundo e até mesmo, em geral odioso: ele poderá tornar-se cômico se, por meio de artifícios apropriados, conseguiram, em primeiro lugar, que ele me deixa insensível. Não digo que então o vício será cômico; digo que a partir daí poderá tornar-se cômico (BERGSON, 2004, p. 104).
O autor defende ainda que ela faz pairar sobre cada um, senão a ameaça de correção, pelo menos a perspectiva de uma humilhação que, mesmo sendo leve, não deixa de ser temida. Essa deve ser a função do riso. Sempre um pouco humilhante para quem é seu objeto, o riso é de fato uma espécie de trote social (BERGSON, 2004, p. 101).
O princípio da dignidade da pessoa humana tem como definição “que cada ser humano possui um valor intrínseco e desfruta de uma posição especial no universo” (BARROSO, 2012, p. 14).
Como destaca SARLET:
Uma qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. (SARLET, 2012, p. 73)
A dignidade humana é caracterizada por duas faces, uma positiva e ou negativa, na negativa visa coibir o tratamento ofensivo, degradante e toda e qualquer discriminação odioso ao ser humano, foi com essa base que a Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, III, garantiu que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” bem como elenca no artigo 5º, XLI que “lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Na face positiva, a dignidade humana garante condições materiais mínimas de sobrevivência digna do ser humano. Com dois deveres do Estado o primeiro de garantir dignidade humana, o qual seja o de respeitar os limites da ação do estado através da dignidade do ser, e o segundo garantir ações que promovam a dignidade humana fornecendo todo amparo para a sua concretude.
Na sociedade que tem como pauta a defesa de direitos, a sua primazia é o reconhecimento que todos os sujeitos são passiveis de direitos, independentemente de sua classe social, seu delito, sua raça, pois o bem a ser protegido essencialmente e a dignidade da pessoa humana. Hannah Arendt(Apud LAFER, 1988) sustenta “o primeiro direito humano, no qual derivam os demais, é o direito a ter direitos”.
No Brasil o STF na ADI 2.903, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1/12/2005, adotou essa linha de decidir que“direito a ter direitos: uma prerrogativa básica, que se qualifica como fator de viabilização dos demais direitos e liberdades”.A garantia da proteção da dignidade da pessoa humana tem como principal escopocoibir a repetição de comportamentos e atitudes que se tratou e igualou o ser humano ao nada, limitando o atuar do estado pelo princípio de efetivação dos direitos fundamentais decorrente do sistema ético.
O humor que se utiliza de discurso hostil para alcançar o seu público alvo, como no caso em que sofreu o casal Smith na cerimônia do Oscar, utiliza em sua defesa dos argumentos da liberdade de expressão como “argumento de salvo conduto” (MIGUEL, 2003) como defensores de uma absoluta e constitucional liberdade de expressão, representada pela manifestação humorística (livre manifestação do pensamento artístico e cultural).
Porém, o chamado direito de expressão ou de pensamento não consiste em um direito absoluto de poder dizer e fazer tudo aquilo que se quer. A liberdade de manifestação é limitada por outros direitos e garantias fundamentais, como a vida, a igualdade, a integridade física, a liberdade de locomoção, e a dignidade da pessoa humana. (FERNANDES, 2012, p. 372).
Os discursos de humor com cunho de discriminativo e diminuitivo do ser são proliferados abertamente aproveitando-se dos risos que criam barreiras quase não perceptíveis de que o que há por debaixo do véu na verdade são ofensas que propagam ideias de desvalorização e humilhação.
O problema só poderá ser resolvido por meio de um projeto ético educacional de grandes proporções que contemple valores como a justiça e a tolerância e que exista um respeito pela dignidade do ser. Vale destacar que “todas essas formas de negação dos direitos humanos refletem uma visão distorcida de homens que desejam provar uma pretensa superioridade e “barbarizam” outros seres humanos com o intuito de rebaixá-los a um nível de total desrespeito da sua condição humana” (BENTES, SALLES, 2012, p. 85).
Como bem destaca Fagner Vinícius de Oliveira:
“não podemos admitir em um mundo globalizado em que se visa viver em plena paz e harmonia, o reconhecimento de apenas uma parte da sociedade como inserida no escopo de proteção dos direitos humanos, quando os direitos humanos são universais e indisponíveis a todos” (DE OLIVEIRA, 2017, p. 77).
Autor Fagner Vinícius de Oliveira, advogado, escritor, mestre em Direitos Humanos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Lu´s Roberto. O novo direito constitucional brasileiro. Brasilia. OAB, Conselho Federal, Comissão Nacionl de Direitos Humanos, 2012.
BENTES, Hilda, SALLES, Sergio. Fronteiras do reconhecimento: educando o si mesmo como estrangeiro sob a ótica de Paul Ricoeur, Revista conhecimento e diversidade, Niterói, 2012.
BERGSON. Henri. O riso: ensaio sobre significação da comicidade. Trad. Ivone CastiIho Benedelli, São Paulo:, Martins Fontes, 2004.
BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro, Campus, 2004.
DE OLIVEIRA, Fagner Vinícius. Direitos Humanos para humanidade, um discurso acerca da universalidade e indsponibilidade dos direitos humanos. In VAL, Eduardo; DELGADO, AnaPaula; SLOBODA; Pedro. Efetividde dos direitos humanos e direito internacional. Rio de Janeiro, Multifoco, 2017.